Proteger do tabagismo as novas gerações
Não há como fazer frente ao lobby do tabaco sem a união da sociedade, de entidades e organizações médicas e lideranças políticas.
José Serra, O Estado de S.Paulo
28 de abril de 2022 | 03h00
Embora estejamos em ano eleitoral, é importante lembrar que diversos projetos essenciais para melhorar a qualidade de vida da população continuam a tramitar no Congresso Nacional e não deveriam ser engavetados até que comece a nova legislatura, em fevereiro do próximo ano. Sobretudo no caso de temas ligados à saúde pública, como o combate ao tabagismo.
Em 2015, apresentei um projeto de lei (PL) que reúne algumas das principais medidas para o controle do tabagismo no País, incluindo a proibição do uso de aditivos de sabor em cigarros, o fim da propaganda de fumígenos no ponto de venda, a adoção de embalagens padronizadas sem elementos gráficos para atrair jovens e a tipificação como infração de trânsito o fumo em carros com passageiros menores de idade. Com essa combinação de propostas, o projeto tornou-se o mais abrangente da área, até então. Apesar da aprovação pelo Senado em 2019, a matéria permanece parada na Câmara dos Deputados.
Insisto no assunto porque, nas últimas décadas, o Brasil obteve bastante sucesso na política de controle do tabagismo. Também em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o Brasil tornou-se o segundo país do mundo a cumprir as medidas recomendadas pelo órgão, tendo reduzido em 40% o número de fumantes durante a última década.
Medidas como a lei antifumo, assim como a restrição à publicidade do cigarro, implantadas pelo Ministério da Saúde do fim dos anos 1990, impactaram numa drástica redução do fumo. Esse êxito, entretanto, não impede que continuemos a avançar. No entanto, ameaças recentes ao controle do tabagismo mostram que estamos caminhando em marcha à ré.
As últimas edições da pesquisa Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) registraram que a queda na prevalência de tabagismo na população desacelerou e o número de fumantes está se estabilizando num patamar ainda alto, entre 9% e 10%.
Os cigarros eletrônicos são o maior motivo de preocupação. Apesar de esses dispositivos terem o comércio, a importação e a propaganda vedados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), eles são vendidos ilegalmente. A Pesquisa Nacional de Saúde de 2019 mostrou que a prevalência de uso dos cigarros eletrônicos na população geral ainda é baixa (0,64%), mas esconde um enorme risco: 70% dos consumidores têm entre 15 anos e 24 anos. São 700 mil adolescentes e jovens adultos, dos quais mais de 60% nunca fizeram uso de cigarros tradicionais. No entanto, foram apresentados à nicotina por meio destes novos produtos e podem acabar dependentes pelo resto da vida.
A indústria do tabaco vem pressionando fortemente a Anvisa para permitir o comércio desses produtos no País. Por enquanto, a norma atual está mantida, mas a agência anunciou que fará uma análise do pleito, o que, esperamos, traga melhorias, e não retrocessos.
É fundamental, para combater as estratégias de avanço da indústria tabagista em busca de conquistar novos consumidores, implementar a proibição de sabores e aromas, por exemplo. A variedade de sabores voltados ao público infantil é enorme: morango, uva, baunilha e chiclete são apenas algumas das muitas opções disponíveis.
O fim dos produtos de tabaco com sabor – e as demais propostas de meu PL – atende às medidas preconizadas por um tratado internacional de saúde pública do qual o Brasil é signatário junto com mais de 180 países, a chamada Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT).
Uma das determinações da CQCT é a criação de um órgão que promova a implementação da convenção. No caso brasileiro, essa função é realizada pela Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro (Conicq), um colegiado governamental que desempenhou papel fundamental nos avanços até aqui.
Em setembro do ano passado, assinei um manifesto com outros sete ex-ministros da Saúde pedindo ao atual chefe da Pasta, Marcelo Queiroga, a reconstituição da comissão. No mesmo mês, um vídeo publicado num portal jornalístico apresenta uma cena dantesca: membros do governo federal, em reunião da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva do Tabaco, combinam ações para extinguir a comissão.
Esse conjunto de fatores deixa clara a necessidade de continuarmos a lutar pela adoção de novas políticas de controle do tabaco e a defender a legislação em vigor. É preciso fiscalizar e inibir o comércio ilegal de cigarros eletrônicos, assegurar o cumprimento das leis antifumo, aumentar os impostos sobre produtos de tabaco e aprovar as medidas previstas no PL 6.387/2019.
Não há como fazer frente ao lobby do tabaco sem a união da sociedade, de organizações e entidades médicas e lideranças políticas. Só assim conseguiremos continuar a avançar no controle do tabaco e garantir a eficácia de uma das políticas de saúde mais bem-sucedidas do Brasil. Esperar a próxima legislatura significaria deixar a população exposta às estratégias da indústria para promover seus produtos e conseguir novos consumidores: um retrocesso inadmissível.
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SENADOR (PSDB-SP) |