A
indústria do fumo, num futuro não muito distante, será
reconhecida como o maior atentado à saúde pública em toda a
história da humanidade. Nunca se fez uma campanha tão sórdida,
exclusivamente em busca de lucros, como a que vem sendo
desenvolvida pela indústria tabagista tirando partido das mais
escabrosas estratégias.
Denúncias envolvendo histórias
e expedientes abusivos relacionados à indústria do fumo não
são incomuns. Com alguma freqüência, pacientes terminais,
vítimas especialmente de câncer e que fumaram a vida toda,
denunciam manipulações de que foram vítimas. Quase sempre, a
indústria de cigarros dá sua versão recorrendo à lógica fácil
que faz a delícia de muitos no estilo "me engana, que eu
gosto".
Nessa defesa do indefensável a indústria do
fumo tem se valido de pretensas justificativas científicas –
como mostraram, na edição de 19/1/2003, os repórteres Fabiane
Leite e Mario Cesar Carvalho, da Folha de S. Paulo.
O
material levantado pelos repórteres mostra como, de forma
insidiosa, típica de sua forma de atuar, a indústria do fumo
suborna pesquisadores científicos para obter resultados que ao
menos amenizem o estrago que o cigarro faz à saúde da
população. Direta e indiretamente, no caso de fumantes ativos
e passivos.
País de tradição científica recente, com
raízes no início do século 19 e por um acidente histórico
(chegada da corte portuguesa fugindo de Napoleão), o
imaginário brasileiro abriga uma visão idealizada da ciência e
dos cientistas.
Antes que críticos apressados leiam
aqui uma condenação à lógica científica, convém esclarecer,
por cautela e precaução, que a ciência é indispensável a
qualquer sociedade humana.
Mesmo grupos indígenas –
pelo menos duas dezenas que, na Amazônia, ainda permanecem sem
contato com a sociedade exterior – têm seu corpo de
conhecimentos que sem dificuldades poderíamos chamar de
científicos. Ainda que os métodos possam ser inteiramente
distintos.
Um pajé que trata um doente, por exemplo,
teve um longo aprendizado e é um atento observador da
natureza. Conhece plantas e métodos terapêuticos que lhe foram
passados por sucessivas gerações de pajés.
Reafirmado
que a ciência é imprescindível, é preciso considerar que a
imagem idealizada – na verdade, estereotipada – do pesquisador
científico é uma obra dos meios de comunicação.
Pesquisadores subornados.
Jornalistas que
poderíamos chamar de "analfabetos científicos", terminologia
nada simpática, mas nem por isso improcedente, costumam
escrever montanhas de tolices sobre o fazer científico.
A raiz dessa dificuldade está dentro das redações.
Proprietários de publicações e diretores de redação, por
desconhecimento, má-fé ou pelos dois motivos, não se preocupam
com a formação de um corpo de repórteres especializados em
divulgação de ciência.
Também os cursos de jornalismo,
em boa parte dos casos meros caça-níqueis que se aproveitam da
falta de controle do Ministério da Educação, reproduzem idéias
obscurantistas, desinformadas e incorretas sobre o proceder
científico.
No interior da comunidade científica, como
acontece em todo e qualquer grupo profissional, há pessoas
inteiramente descompromissadas com o bem comum. E nisto,
jornalistas e cientistas têm uma curiosa semelhança. Ambas
categorias são egóicas. Aceitam ganhar salários modestos para
acessar o que promete ser a entrada para o Olimpo. São
canditados determinados a olimpianos, para usar a expressão de
Edgar Morin.
Uma juíza, com o poder despótico de que
os juízes estão investidos para separar o bem e o mal,
determinou há algum tempo a suspensão da obrigatoriedade do
diploma de jornalismo. O assunto é, de fato, controvertido.
Mas, antes da obrigatoriedade, seguindo uma tradição
aperfeiçoada por Assis Chateaubriand, boa parte dos
jornalistas eram achacadores profissionais.
Os cursos
de jornalismo trouxeram maior dignidade à profissão e se,
neste momento, estão em condições insatisfatórias, é por
razões que envolvem a profunda comercialização do ensino e a
falta de um controle mais eficiente capaz de garantir
qualidade final aos formandos. Nisso, os cursos de jornalismo
confirmam regra. Não são nenhuma exceção.
O excelente
trabalho dos repórteres da Folha, investigando a indústria do
fumo, contrasta saudavelmente com esta situação e levanta
questões que refletem um conjunto de problemas e não apenas a
exploração criminosa que a indústria tabagista faz.
O
Estado mesmo tem uma parcela múltipla e superposta de
responsabilidades. Durante muito tempo se fez vista grossa ao
cigarro, levando-se em conta os impostos arrecadados. O
ex-ministro e agora governador de São Paulo, José Serra fez,
neste caso, um dos trabalhos mais importantes de saúde pública
ao mover uma guerra contra o fumo. Serra foi tachado de
"chato", o que não deixa de ser verdade, mas, neste e em
outros casos relacionados à saúde pública, fez o que alguém
com senso de responsabilidade deveria fazer. Pena que, como
governador, não tenha dado seqüências às preocupações que
demonstrou como ministro.
Já os pesquisadores
científicos citados pela Folha como subornados pela indústria
tabagista para produzir resultados que amenizassem o perigo do
fumo são um perigo para a ciência e sociedade. Contribuem,
tirando proveito da legitimidade da ciência perante a opinião
pública, para arruinar a saúde das pessoas de maneira
inaceitável ao mesmo tempo em que agem de forma a comprometer
a própria pesquisa científica.
Desigualdade de renda
Convenhamos que qualquer pessoa dotada de senso
crítico é capaz de concluir que fumantes e não fumantes
reunidos num espaço comum, como um restaurante, são todos
fumantes. A diferença está em serem fumantes ativos ou
passivos.
A propósito, o material levantado pelos
repórteres da Folha reafirma os elevados índices de incidência
de câncer, problemas respiratórios e mesmo de inflamações
óticas provocadas pelo cigarro em fumantes passivos.
A
legislação atual prevê que cabe a estados e municípios a
definição de critérios envolvendo a proteção de ambientes
contra os danos do fumo. Neste caso, a reação de funcionários
teoricamente responsáveis da prefeitura da cidade de São Paulo
mostra a desinformação, negligência e inoperância que se
estende por todo o país. E o governador Serra, no passado tão
atuante como antitabagista, agora se revela omisso. Talvez
pelo receio de eventuais impactos negativos em seu projeto
para 2010.
Neste ambiente de ninguém sabe, ninguém viu,
ninguém é responsável por nada que diga respeito ao bem comum,
o que faz com que a indústria do fumo "deite e role", para
usar uma expressão coloquial.
O material levantado por
Fabiane Leite e Mario Cesar Carvalho, da Folha, deveria, no
mínimo, produzir uma reação dentro das universidades que
abrigam os acusados, com registros de suas "colaborações" na
própria indústria do fumo – neste caso o Center for Indoor Air
Research (Ciar), um simulacro de unidade científica preocupada
com a qualidade do ar em ambientes fechados.
A grande
farsa do fumo, mostram os repórteres, se beneficia também de
uma outra classe de profissionais capazes de se devotarem
inteiramente à exploração do bem comum: os advogados.
O Ciar, revelam os repórteres da Folha, funcionou até
1998 como uma empresa de "fachada", de "lavagem de
responsabilidades" (para usar uma terminologia comum ao
tráfico de drogas) na relação entre a indústria do fumo e o
público.
Advogados foram peças-chave no funcionamento
desse esquema.
Ao Ciar chegavam os trabalhos de
pesquisadores, não conferidos por seus pares, como defende o
método científico, para dar ares de legitimidade ao que nunca
passou da mais legítima manipulação. O desmonte dessa farsa,
mostram os repórteres, começou em duas frentes. A primeira na
Universidade da Califórnia, reunindo os cardiologistas Stanton
Glantz e o clínico Joaquin Barnoya. A segunda área de
resistência foi a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas).
Glantz e Barnoya publicaram suas denúncias num artigo
na revista científica Tobacco Control envolvendo os métodos da
indústria do fumo para cooptar cientistas a fazer seu jogo
sujo.
Junto à Opas, a enfermeira brasileira Stella
Aguinaga Bialous e Stan Shatenstein revelaram em La
rentabilidad a costa de la gente como a indústria tabaqueira
atuou para impedir que o fumo fosse banido em grandes mercados
da América Latina – caso de Brasil, Argentina, Chile,
Venezuela, Equador, Guatemala e Costa Rica.
Barnoya,
segundo levantaram os repórteres, avalia que "o combate ao
fumo passivo é a área mais atrasada da saúde pública na
América Latina". Não é como a fome, um problema político
ligado à distribuição desigual da riqueza. O tabaco, segundo o
pesquisador, "é um caso político onde a indústria venceu a
ciência".
Abusos similares
Os segredos
mafiosos da indústria do fumo vieram à tona num acordo feito
com estados norte-americanos em 1997, quando a indústria, por
fraudes cometidas contra a saúde pública, aceitou pagar
indenizações de US$ 368 bilhões, a maior da história, e foi
obrigada a abrir suas estratégicas e documentos.
Alguns relatos obtidos pelos repórteres da Folha
chocam pela crueza de propósitos, ainda que estes não sejam
muito diferentes dos argumentos utilizados por outros setores
industriais interessados em aumentar suas vendas sem qualquer
preocupação com os efeitos negativos dessa determinação.
O caso da indústria do tabaco deixa, rigorosamente,
poucas categorias profissionais ligadas direta ou
indiretamente à saúde pública fora de suspeição.
A
ingenuidade/negligência médica, assunto que está para ser
investigado no Brasil, também dá sua parcela de contribuição
para que estratégias perversas tenham sucesso, entre elas a
determinação de se conquistar novos consumidores junto à
população jovem.
A imprensa, neste caso, está
representada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) –
órgão que durante a ditadura militar teve papel importante na
defesa dos direitos humanos. Em relação ao cigarro, no
entanto, a ABI, num seminário realizado no Rio, em 1994,
concluiu pela farsa de que, comparado a outros problemas, o
fumo não representa maiores dificuldades num país como o
Brasil.
Os abusos criminosos da indústria do tabaco
dão consistência adicional a uma outra denúncia que aparece
com freqüência e, por isso mesmo, está à espera de uma boa
investigação jornalística: o teste de medicamentos.
Vozes isoladas, ouvidas quase que ao acaso, sustentam
que o Brasil foi transformado em cobaia para experimentos com
drogas por parte da indústria farmacêutica. A julgar pelo seu
histórico, o abuso do segmento de fármacos não deve ser menos
cruel e desrespeitoso que o da máfia do fumo.
Ulisses
Capozzoli é jornalista, mestre e doutor em ciência pela USP,
-ex-presidente da Associação Brasileira de Jornalismo
Científico (ABJC) é editor de Astronomy Brasil e articulista
de Scientific American Brasil. Publicado no Observatório da
Imprensa (www.observatoriodaimprensa.com.br), em 29 de janeiro
de 2003, aqui com ligeira atualização. |