Dráuzio Varella
A dependência química causada pela nicotina parece estar além da
possibilidade de controle de muitas pessoas. Embora tenha visto
inúmeros fumantes se livrarem do cigarro sem qualquer ajuda,
motivados exclusivamente pela força de vontade (como foi meu caso e
o de mais de 90% dos ex-fumantes), e acredite que tentar convencer
todos os que fumam a deixar de fazê-lo seja um dever imperioso de
cada médico, o exercício da cancerologia me ensinou que algumas
pessoas não conseguem largar de fumar, independentemente da ajuda
que sejamos capazes de lhes oferecer ou da desgraça que venha se
abater sobre elas.
A experiência pessoal e vários estudos científicos demonstram que
mesmo a presença de um caso de câncer provocado pelo cigarro num
ente querido não costuma servir de motivação para que os familiares
próximos deixem de fumar. Muitas vezes vi filhos desesperados com o
sofrimento do pai agonizante, com câncer de pulmão, saírem da beira
do leito para fumar na porta do hospital.
Há 20 anos tratei de um advogado com câncer de laringe, irmão
gêmeo univitelino de um fumante como ele. Quando a doença foi
diagnosticada já estava numa fase em que não houve alternativa senão
retirar a laringe e fazer uma traqueostomia definitiva, procedimento
segundo o qual a traquéia é exteriorizada através de um orifício
aberto no pescoço para garantir a respiração. A impossibilidade de
emitir a voz resultante da ausência das cordas vocais e a
necessidade de respirar pelo orifício do pescoço não foram
suficientes para motivá-lo a livrar-se da droga causadora de suas
agruras: durante os nove meses em que ainda viveu continuou a fumar
através da traqueostomia. Dez anos mais tarde, o gêmeo sobrevivente
teve um tumor maligno que o fez perder o pulmão esquerdo. Ao
contrário do irmão falecido, no entanto, a doença lhe deu forças
para abandonar o cigarro.
Doentes com câncer que continuam a fumar depois do diagnóstico
têm sobrevida mais curta, maior risco de recidiva da doença,
incidência mais alta de um segundo diagnóstico de câncer e menor
probabilidade de responder favoravelmente ao tratamento. Além disso,
apresentam mais complicações à quimioterapia e à radioterapia: boca
seca, inflamações das mucosas do trato aero-digestivo, perda de
paladar, da voz, dificuldade de cicatrização e maior probabilidade
de necrose de tecidos. Apesar de todos os riscos, as estatísticas
mostram que cerca de 30% dos fumantes portadores de tumores malignos
não largam do cigarro!
Pesquisadores da Universidade de Filadélfia acabam de publicar um
estudo que envolveu 435 fumantes com câncer, matriculados em
diversos hospitais americanos. Os participantes foram divididos em
dois grupos: o primeiro, constituído por 217 pacientes, recebeu
aconselhamento médico especificamente dirigido para abandonar o
fumo; o segundo, com 218 participantes, não recebeu nenhum tipo de
aconselhamento especial e foi considerado grupo-controle.
A intervenção médica consistia em enfatizar os benefícios gerais
de viver sem o cigarro (sensação de bem-estar, melhora da
respiração, apetite, olfato etc.) e as vantagens específicas no caso
de câncer (aumento da chance de cura etc.). Os componentes deste
grupo eram convidados a marcar uma data para deixar de fumar e
instruídos sobre as vantagens do uso de adesivos de nicotina e de
medicamentos antidepressivos, como a bupropiona. Além do
aconselhamento, recebiam um folheto com instruções e um número de
telefone de uso gratuito para inscrever-se num grupo de auto-ajuda
aos tabagistas.
Seis meses depois, apenas 13,2% de todos participantes haviam
parado de fumar: 11,9% faziam parte do grupo-controle e 14,4% do
grupo que recebeu intervenção médica. A pequena diferença não foi
estatisticamente significativa. Depois de 12 meses, 13,6% do
grupo-controle e 13,3% do grupo que recebeu intervenção médica
haviam parado de fumar, diferença novamente insignificante.
Quatro variáveis presentes na história da relação dos fumantes
com a nicotina foram associadas à maior facilidade para largar o
cigarro: começar a fumar depois dos 16 anos, fumar menos do que 15
cigarros por dia, ter participado de um programa de auto-ajuda para
tabagistas nos últimos seis meses ou manifestar forte desejo de
abandonar o fumo já na primeira entrevista.
Esses resultados aparentemente contradizem uma série de outros.
Pesquisas anteriores demonstram que 10% a 11% dos fumantes conseguem
deixar de fumar, em resposta a simples recomendações transmitidas
por seus médicos durante as consultas de rotina.
Talvez a explicação para a ausência de resultados positivos entre
pacientes com câncer se deva ao fato de que os participantes neste
caso fazem parte daquele grupo de pessoas que costumamos chamar de
fumantes inveterados. Alguém que vai ao médico por uma razão
qualquer e pára de fumar em atendimento a uma simples recomendação
para evitar problemas futuros, provavelmente apresenta um grau de
dependência de nicotina menor do que quem não consegue parar mesmo
depois do diagnóstico de câncer.
Os Alcoólicos Anônimos, grupo que presta inestimável serviço aos
interessados em ficar livre da bebida, consideram que há pessoas
potencialmente dependentes do álcool antes mesmo de começar a beber.
Para elas só existiria uma forma de evitar o alcoolismo: não se
aproximar do álcool. É possível que em relação à nicotina e a outras
drogas exista fenômeno semelhante.
Como a dependência de nicotina é adquirida na puberdade e
adolescência (em 90% a 95% dos casos antes dos 20 anos), as crianças
pequenas devem ser instruídas de que o cigarro é um mero dispositivo
para administrar nicotina, droga que conduz a mais escravizante das
dependências químicas. Há pessoas que, por razões metabólicas,
quando começam a fumar perdem o controle e não conseguem mais parar,
mesmo diante da possibilidade concreta da
morte.