São Paulo, sábado, 21 de julho de 2007

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DRAUZIO VARELLA

As grandes e as pequenas tragédias


O caos aéreo mostra que a vida humana no Brasil vale menos do que em outros países


VIVER NO Brasil é mais arriscado.
Tinha decidido que o tema da coluna deste sábado seria o estudo do economista Gabriel Hartung, da Fundação Getúlio Vargas, a respeito da relação existente entre crime e gravidez indesejada.
O trabalho foi inspirado na publicação do economista Steven Levitt, que atribuiu a queda simultânea da violência nas grandes cidades norte-americanas ocorrida a partir de 1993, à legislação que havia liberado o aborto 17 anos antes, naquele país.
Resolvi fazê-lo porque minha experiência colhida em 18 anos de trabalho em presídios paulistas coincide com as conclusões inferidas pelo autor em sua pesquisa conduzida com rigor acadêmico: a gravidez fortuita, fruto da falta de acesso aos métodos de contracepção -a violência mais brutal cometida pela sociedade brasileira contra as famílias pobres-, colabora decisivamente para o aumento da criminalidade.
Enquanto escrevia, recebi um telefonema angustiado de minha filha mais nova, seguido imediatamente por outro da irmã. Queriam saber se eu não tinha viajado repentinamente, como às vezes acontece, porque havia notícias da queda de um avião em Congonhas.
Ignorante em questões aeronáuticas, jamais me atreveria a levantar hipóteses sobre as causas do desastre, mas a expressão "tragédia anunciada", empregada por vários jornalistas e nas seções de leitores, encontra certa lógica.
De uns tempos para cá, atrasos, cancelamentos, conexões perdidas, trocas sucessivas de portão de embarque e a gritaria esganiçada dos alto-falantes que tenta pôr ordem na bagunça deixam inseguros até passageiros como eu, acostumados a pegar no sono em plena decolagem.
Como conseguimos conviver com essa confusão assustadora, numa atividade que não admite erros?
A única explicação é a de que a vida humana no Brasil vale menos do que em outros países.
É por valer menos que hordas de bêbados saem dos bares em alta velocidade sem que a polícia os intercepte antes que matem inocentes.
É a certeza de impunidade que leva o ladrãozinho do semáforo a disparar à queima-roupa contra a vítima que ousou desobedecer a ordem de parar.
Pela mesma razão, nossos policiais matam mais do que os outros e os marginais atiram contra eles com muito mais tranqüilidade do que em qualquer país civilizado.
Por que as mesmas multinacionais fabricantes de cigarro que fazem acordos com o governo dos Estados Unidos, nos quais se comprometem a desembolsar centenas de bilhões de dólares a título de indenização para cobrir parte dos prejuízos causados pelas doenças provocadas pelo fumo (que matam 400 mil americanos por ano), jamais pagaram no Brasil um centavo sequer pelo tratamento de um caso de câncer de pulmão?
O que leva a Igreja Católica a pagar mais de 600 milhões de dólares às vítimas da pedofilia praticada por padres em colégios dos Estados Unidos e a fingir que fatos idênticos jamais ocorreram no Brasil? Por que sai de graça molestar crianças brasileiras?
Se não for por flagrante desrespeito à vida dos que dependem de verbas públicas para matricular os filhos na escola e receber assistência médica, por que motivo seríamos coniventes com tamanha corrupção praticada por políticos e funcionários públicos mancomunados com empresários-bandidos, sem que a Justiça possa reaver o dinheiro roubado nem trancar um só na cadeia por mais do que 15 dias?
Semana passada, às sete da manhã, encontrei um colega mais velho de fisionomia abatida, no elevador do hospital. Contou que sua aparência era resultado da noite mal dormida por causa de um doente operado na véspera, que passara a madrugada com febre alta.
Enquanto aquele médico com mais de 50 anos de profissão perdia o sono por causa de um paciente com febre, quantas pessoas se acotovelavam nos ambulatórios, prontos-socorros e corredores dos hospitais públicos à espera da atenção que a sociedade lhes nega?
Grandes tragédias provocam comoção geral pela imprevisibilidade com que ocorrem e porque têm o dom de gerar empatia e sentimentos de solidariedade humana. Nós nos imaginamos no lugar dos que foram vitimados por elas e chegamos a sentir uma parcela ínfima da dor dos que perderam entes queridos.
As pequenas, no entanto, graças à repetição diária sob nosso olhar complacente, acabam por anestesiar a compaixão pelo outro e tornar banal a convivência com o sofrimento alheio.


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